( Emir Sader* – 24.01.07 )

Este texto é “dedicado aos que aceitaram as famosas “propostas
irrecusáveis” e assumiram cargos de chefia nos grandes meios de comunicação
monopolista ou numa grande empresa privada, daquelas que exigem silêncio ou
declarações adaptadas aos interesses dos “patrões”. Esquecem-se que não
existem “propostas irrecusáveis”, mas colunas vertebrais demasiado
flexíveis.

Não são casos isolados, finalmente as redacções daqueles órgãos de
informação estão cheias de ex-comunistas, ex-trotskistas e ex-esquerdiatas,
normalmente “arrependidos” ou, pura e simplesmente, “convertidos”, que
passam o resto da vida – como alguns intelectuais que ganham posições de
destaque nas grandes empresas – dizendo que já não somos o que éramos,
“limpando-se” aos olhos da burguesia dos seus “pecadilhos” da juventude.

É indispensável referir que “quem é imbecil aos 20 não é radical, se é
imbecil aos 40 continua a sê-lo”, ou aludir à passagem “de incendiário aos
20 para bombeiro aos 40″, deixando no ar a afirmação de que se teve uma
juventude agitada antes de chegar aos 40.

Um bom começo pode ser dizer que “o socialismo fracassou”, que “está
desiludido com a esquerda”, que “são todos iguais”. Aí já estará em
condições de dizer que “não há direita nem esquerda”, que alguns que se
dizem da esquerda, na realidade são uma “nova direita”, pior que a direita,
e que, por isso mesmo, o melhor é permanecer equidistante. Do cepticismo,
passa-se facilmente ao cinismo de “votar na direita assumida” para derrotar
a direita disfarçada.

Outra forma é criticar veementemente Estaline e, depois de dizer que foi
igual a Hitler – “os dois totalitarismos” -, afirmar que ele apenas aplicou
as ideias de Lenine para, finalmente, dizer que as origens do
“totalitarismo” já estavam a obra de Marx. Afirmar que Weber tinha maior
capacidade explicativa que Marx, que Raymond Aron tinha razão na polémica
com Sartre. Que o marxismo é redutor, que só têm em conta a economia, que o
seu reducionismo é a base do “totalitarismo soviético”. Que nele não há
lugar para a “subjectividade”, que reduz tudo a uma contradição,
capital-trabalho, sem ter em conta as “novas subjectividades” oriundas das
contradições do género, da etnia, do meio ambiente, etc..

Não falar de Fidel sem dizer previamente “ditador”, e chamar-lhe Castro em
vez de Fidel. Desqualificar Hugo Chávez como “populista”, outras vezes como
“nacionalista”, dando a tudo isto uma conotação de “fanatismo”, de
“fundamentalismo”. Concentrar a atenção na América Latina sobre a Bolívia e
a Venezuela como países “problemáticos”, “instáveis”, nunca falando da
Colômbia. Sempre que se fale na ampliação da democracia existente no
continente, acrescentar “excepto Cuba”. Nunca falar do bloqueio
norte-americano a Cuba, mas sempre da “transição” – deixando sempre no ar a
ideia de que num momento futuro passarão para as democracias que por aqui
andam.

Dizer que a América Latina “não existe”, são países sem unidade interna –
pronunciar “cucarrachos” [1] de forma claramente depreciativa. Que a nossa
política externa deve ter vistas mais largas, relacionar-se com as grandes
potências e trabalhar para ser uma delas, em lugar de continuar a conviver
com países da região e os do sul do mundo – África do Sul, Índia, China,
etc..

Pronunciar-se contra as quotas das universidades, dizendo que introduzem o
racismo numa sociedade organizada à volta de uma “democracia social” – será
bem-vinda uma citação de Gilberto Freire e o silêncio sobre Florestan
Fernandes -, que o mais importante é a igualdade perante a lei e a melhoria
gradual do ensino básico e médio, para que, finalmente, todos tenham acesso
às universidades públicas – não se sabem quando, mas é preciso ser paciente.
Dizer, sempre, que o principal problema do Brasil e do mundo é a educação.
Que há trabalho, que existem possibilidades, mas que falta mão-de-obra
qualificada. Que os direitos não são o fundamental, mas as oportunidades –
falar da sociedade norte-americana como a mais “aberta”.

Desqualificar sempre o Estado como ineficaz, burocrático, corrupto e
corruptor, em contraposição à “economia privada”, ao “mercado” com o seu
dinamismo e a sua capacidade de inovação tecnológica. Exaltar as
privatizações das telecomunicações – “antes ninguém tinha telefone” – e da
companhia Vale Rio Doce, silenciar o êxito da Petrobrás ou afirmar que
“pensa que se tivesse convertido em Petrobrax teria sido muito melhor!”.

Como vemos, há inúmeros motivos para os que decidiram deixar de ser de
esquerda – bastaria o da “a caridade bem ordenada começar sempre por nós
próprios” – e tentar ganhar a vida de costas para o mundo e em benefício
próprio. O “mercado” retribui generosamente os que renegam os princípios em
que um dia acreditaram.

Mas é mais fácil ser de esquerda

Não são necessários pretextos, bastam as razões sobre o que é este mundo e o
que pode ser outro mundo possível.

Nota:
[1] “Cucarachos” termo depreciativo usado no Brasil para referir os
restantes sul-americanos.

* Professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ); é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas
da UERJ